Co-autora: Carolina dos Reis[1]
A concepção dos direitos do homem baseada na suposta existência de um ser humano como tal, caiu em ruínas tão logo aqueles que a professavam encontraram-se pela primeira vez diante de homens que haviam perdido toda e qualquer qualidade e relação específica – exceto o puro fato de serem humanos[2].
RESUMO
O presente artigo pretende analisar o papel desempenhado pelos direitos humanos na atualidade, dado que, em que pese a existência de inúmeras Convenções e organismos de proteção, eles continuam sendo maciçamente violados.
Palavras chaves: Direitos Humanos- encobrimento –símbolo.
1. INTRODUÇÃO
Ao lado do processo de internacionalização dos direitos humanos, que desenvolveu o conceito de universalidade e indivisibilidade, tem-se uma violação maciça destes direitos. A pergunta é: trata-se de uma questão de ineficácia jurídica simplesmente ou existem outros motivos? Esse artigo se propõe, em linhas gerais, a responder essa questão.
Inicialmente, analisa o processo de criação da concepção contemporânea dos direitos humanos. Posteriormente, utiliza a teoria desenvolvida pelo professor Marcelo Neves, na obra Constitucionalização Simbólica, para desvendar o que está latente no descumprimento dos direitos humanos.
2. CONCEPÇÃO CONTEMPORÂNEA DE DIREITOS HUMANOS
A história da humanidade registra conflitos que provocaram a morte de muitas pessoas, conflitos que foram incrivelmente destrutivos, porém nenhuma guerra provocou tanto horror e repulsa como a Segunda Guerra Mundial.
Ela causou aversão não somente pela quantidade de pessoas mortas, mas por ter sido, uma guerra impessoal, a tecnologia transformou o ato de matar em automatismo, em apertar um botão. “A tecnologia tornava suas vítimas invisíveis (...) Lá embaixo dos bombardeios aéreos estavam não as pessoas que iam ser queimadas e evisceradas, mas somente alvos”. (HOBSBAWN. 1995, p.57).
Além disso, foi um conflito que envolveu todos os setores produtivos, grande parcela da população européia (militares e civis) lutou e o sentiu diretamente. Para sustentá-lo foi preciso criar uma imagem distorcida do adversário, estava-se em guerra contra o mal, o demônio e não um outro ser humano, igual e movido por paixões e desejos. Combater violentamente o mal é mais fácil que combater um igual.
No pós-guerra, os efeitos foram fortemente sentidos, haviam inúmeros mortos, milhões de deslocados, dentre eles alemães, expulsos da Alemanha ocupada pela Polônia e URSS, e judeus. Ademais, toda a infra-estrutura dos países europeus estava destruída.
Neste contexto desolador, ressurgiu, ainda durante a Segunda- Guerra Mundial, a idéia de criar um novo projeto de união entre todos os Estados com objetivo de manter a paz, a segurança internacional e proteger os Direitos Humanos.
Em 1945, foi assinada a Carta das Nações Unidas, tratado constitutivo da Organização da Nações Unidas (ONU), que em seu preâmbulo declara:
“Nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indivisíveis a humanidade (...) concordaram com a presente Carta das Nações Unidas e estabelecem, por meio dela, uma organização internacional que será conhecida pelo nome de Nações Unidas.” (CARTA das Nações Unidas,2006,p.37).
No seio da organização, em 10 de Dezembro de 1948, foi adotada uma declaração que proclamou os direitos mais elementares do ser humano. Essa declaração é considerada o marco inicial do processo de internacionalização dos direitos humanos.
Dessa forma, a Declaração Universal de Direitos Humanos das Nações Unidas inaugurou a concepção contemporânea desses direitos, como direitos universais e indivisíveis. Universais porque todo ser humano deve ser protegido contra todo e qualquer ato atentatório a sua dignidade, inclusive quando perpetrado por seu Estado de origem. E indivisíveis porque direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais formam um todo interdependente, onde o exercício pleno de um deles somente é possível por meio da garantia e efetividade dos demais.
A partir da declaração da ONU inúmeros outros textos foram assinados, tanto no âmbito regional quanto mundial, com a finalidade de complementar e reforçar os ideais ali expostos, dentre eles o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, assinados em 1966.
Em Teerã, 1968, foi realizada a primeira conferência Mundial sobre Direitos Humanos, que representou a passagem da fase de codificação[3] dos instrumentos para a fase de implementação dos mesmos.
Nesta conferência foram definidos alguns procedimentos a serem adotados para supervisionar a aplicação das regras previstas nos Tratados de Direitos Humanos, uma vez que até aquele momento o único grupo de supervisão existente era o Comitê para a Eliminação de Todas as formas de Discriminação racial.
Segundo ensina Antônio Augusto Cançado Trindade (2000) no decorrer da década de setenta e oitenta foram criados novos grupos de cuja atuação segue três métodos: os mecanismos de petições ou reclamações, de relatórios, e de determinação dos fatos ou investigações.
Em 1970 foram instituídos o Comitê de Direitos Humanos (Pacto de Direitos Civis e Políticos), o Grupo dos Três (Convenção contra o Apharteid). Além do Comitê contra a tortura, Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Comitê sobre os Direitos da Criança criados na década de oitenta.
A atuação desses grupos auxiliou na reparação de muitos danos, por outro lado, atualmente, sua atuação está comprometida pela multiplicidade de violações que lhes exigem uma ação rápida e grande adaptação.
Em Viena, 1993, ocorreu a segunda Conferência Mundial que procedeu a uma análise geral dos métodos de implementação dos direitos humanos.
Os relatórios revelaram dados considerados surpreendentes.
“No plano global até fins da década de oitenta, somente sob o chamado sistema da resolução 1503 do ECOSOC, o Grupo de Trabalho sobre comunicações tinha examinado mais de 350.000 denúncias de “quadro persistente de violações”. (TRINDADE, 2000, p.61).
Contudo, mesmo com todos os instrumentos de codificação e implementação dos direitos humanos estes continuam sendo maciçamente violados, o que nos deixa dois problemas, quais sejam, porque os direitos humanos são constantemente desrespeitados e qual é o papel que eles exercem na atualidade?
3. A FORÇA SIMBÓLICA DOS DIREITOS INTERNACIONAIS DOS DIREITOS HUMANOS.
Inicialmente, convém conceituar em que sentido emprega-se a palavra simbólica. Marcelo Neves em seu livro A constitucionalização Simbólica desenvolveu este termo, em suma, com o sentido de algo que “importa uma linguagem ou discurso em que há um deslocamento do sentido para outra esfera de significações”. (NEVES, 2005, p.4). Isso significa que a um texto pode ser atribuído significados outros que não aqueles pretendidos pelos autor.
Várias são as formas de dominação. Tem poder quem domina os processos de construção dos significados dos significantes[4]. Tem poder quem é capaz de tornar as coisas naturais, “a automatização das coisas engole tudo, coisas, roupas, móveis, a mulher e o medo da guerra.”[5] Diariamente repetimos palavras, gestos, rituais, trabalhamos, sonhamos, muitas vezes sonhos que não nos pertencem. A repetição interminável de rituais de trabalho, de vida social e privada nos leva a automação a que se refere Ginsburg. A automação nos impede de pensar. Repetimos e simplesmente repetimos. Não há tempo para pensar. Não há porque pensar. Tudo já foi posto e até o sonho já está pronto. Basta sonhá-lo. Basta repetir o roteiro previamente escrito e repetido pela maioria. Tem poder quem é capaz de construir o senso comum. Tem poder quem é capaz de construir certezas e logo preconceitos. Se eu tenho certeza não há discussão. O preconceito surge da simplificação e da certeza.
A dominação passa pela simplificação das coisas: o bem e o mal; a democracia e o fundamentalismo; oriente e ocidente; civilização e selvageria; capitalismo e comunismo; natureza e tecnologia. Duas técnicas comuns neste processo de dominação: a) a nomeação de grupos, criando identidades ou identificações; b) a explicação de uma situação complexa por meio de um fato particular real.
O problema não é que o fato particular seja real, o problema consiste na explicação de algo complexo com um exemplo particular que mostra uma pequena parte do todo que ele quer explicar. Comum assistir a este tipo de geração de preconceito na mídia, diariamente. Um exemplo comum diz respeito a recorrente crítica, das ultimas duas décadas, ao estado de bem estar social: o estado de bem estar social tem uma história longa e complexa, que apresentou e apresenta fundamentos, objetivos e resultados diferentes em momentos da história diferentes e em culturas e países diferentes. Entretanto é comum ouvirmos, inclusive de intelectuais, que o estado social é assistencialista (ou pior clientelista) e logo gera pessoas preguiçosas que não querem trabalhar.
O processo ideológico distorce a realidade e cria certezas construídas sobre fatos pontuais que procuram explicar uma situação complexa. O elemento de dominação presente procura construir certezas na opinião pública uma vez que a afirmação vem acompanhada de um fato real que a pessoa pode constatar e a televisão o faz ao trazer a imagem. Portanto, a partir de uma situação que efetivamente ocorre mas que de longe não pode ser utilizada para explicar a complexidade do tema “estado de bem estar social”, quem detém o controle da mídia constrói certezas e as certezas são o caminho curto para o preconceito. Quanto mais certezas as pessoas tiverem, quanto mais preconceituosas forem as pessoas, mas facilmente elas serão manipuladas por quem detém o poder de criar estas “verdades”.
A certeza é inimiga da liberdade de pensamento e da democracia enquanto exercício permanente do dialogo. Quem detém o poder de construir os significados de palavras como liberdade, igualdade, democracia, quem detém o poder de criar os preconceitos e de representar a realidade a seu modo, tem a possibilidade de dominar e de manter a dominação.
Não podemos esquecer quais foram os fundamentos do Direito Internacional, Direito que é de origem essencialmente européia e portanto fundado nas matrizes ideológicas que sustentaram o mito da supremacia da cultura européia no mundo.
O inicio da modernidade, marcada pela formação dos estados nacionais, fundou-se em três matrizes européias, ideológicas e poderosas, que por isto permanecem, em certa medida, até hoje, embora não oficialmente. Embora o discurso de igualdade tenha se afirmado lentamente no final do século XX, a ordem internacional e as relações entre os estados ainda se funda em mitos (idéias falsas) que sustentam ideologias (encobrimentos) como, por exemplo, o mito do selvagem, do oriental e da natureza. Conforme nos lembra Boaventura de Souza Santos[6], estas três matrizes justificaram, e ainda justificam crimes cometidos pelo invasor europeu nas Américas, África e Ásia. A presença destes mitos ainda hoje e bastante clara:
a) O selvagem como ser inferior, não humano. Assim eram vistas as populações originarias das Américas desde a época da invasão européia nos século XV, XVI e seguintes. A repercussão disto ocorre até hoje, quando finalmente as populações originárias começam a assumir seu próprio destino de forma democrática na Bolívia, Equador (com governos democráticos e novas Constituições) e Paraguai com a eleição de Lugo.
b) O oriental e o oriente como uma cultura rica que ficou no passado. O inimigo perigoso, pois diferente dos selvagens americanos, tem forte cultura que, entretanto, foi superada pela civilização européia. Os crimes de guerra comuns contra os povos islâmicos pode ser um dos exemplos deste mito, ainda hoje.
c) A natureza como algo a ser domado e explorado, fundamenta toda a relação que ainda temos com o meio ambiente. A natureza é selvagem e nós, humanos, somos postos fora deste espaço. Não somos parte integrante da natureza. A natureza nos oferece recursos a serem explorados. Este mito fundamenta o sistema econômico vigente e nos leva de forma acelerada para a destruição da “espécie” humana no planeta.
É impressionante como as palavras se desconectam de seu sentido originário.[7] Isto é um perigoso anuncio de uma forma mais sofisticada de totalitarismo. Como afirma o filósofo esloveno Slavoj Zizek, vivemos uma luta internacional pela construção do senso comum.[8] Quem é capaz de dizer o que é “liberdade”, “justiça”, “segurança” e “desenvolvimento”, entre outras “palavras-chave”[9] deterá o poder sobre as pessoas e suas consciências.
Zizek denuncia em seus textos o uso do discurso dos direitos humanos para encobrir interesses econômicos que sustentam as intervenções em países que efetivamente violam os direitos humanos. Observa o filósofo esloveno que a questão não é o fato de países violarem ou não os direitos humanos, ou se a intervenção não se justifica sob a lógica da proteção destes direitos, mas a questão central é que, quase que invariavelmente, as intervenções em nome dos direitos humanos ocorrem para encobrir outros interesses, que verdadeiramente são os reais interesses que justificam a intervenção: quase sempre interesses econômicos das potências interventoras.
A despolitização dos direitos humanos é um poderoso instrumento ideológico. A despolitização do mundo é uma ideologia recorrente utilizada pelo poder econômico manter sua hegemonia. Nas palavras de Slavoj Zizek “a luta pela hegemonia ideológico-politica é por conseqüência a luta pela apropriação dos termos espontaneamente experimentados como apolíticos, como que transcendendo as clivagens políticas.”[10] Uma expressão que ideologicamente o poder insiste em mostrar como apolítica é a expressão “Direitos Humanos”. Os direitos humanos são históricos e logo políticos. A naturalização dos Direitos Humanos sempre foi um perigo pois coloca na boca do poder quem pode dizer o que é natural o que é natureza humana. Se os direitos humanos não são históricos mas são direitos naturais quem é capaz de dizer o que é o natural humano em termos de direitos? Se afirmamos os direitos humanos como históricos, estamos reconhecendo que nós somos autores da história e logo, o conteúdo destes direitos é construído pelas lutas sociais, pelo diálogo aberto no qual todos possam fazer parte. Ao contrário, se afirmamos estes direitos como naturais fazemos o que fazem com a economia agora. Retiramos os direitos humanos do livre uso democrático e transferimos para um outro. Este outro irá dizer o que é natural. Quem diz o que é natural? Deus? Os sábios? Os filósofos? A natureza?
Os direitos humanos foram exaustivamente codificados e o objetivo desses textos são, em tese, proteger o ser humano contra ameaça de agressão ou agressão a sua dignidade[11]. Porém, hodiernamente esses direitos carecem de força normativa, ou seja, não produzem os efeitos esperados, não protegem os seres humanos.
Marcelo Neves questiona se esse “seria apenas uma questão de ineficácia da norma jurídica ou não.” E afirma que “a resposta negativa a essa questão nos coloca diante do debate em torno da função simbólica de determinadas leis” (no caso, normas, convenções, tratados) (NEVES, 2007, p.30).
Muitas normas exercem funções distintas daqueles representadas em seu texto, uma função que não se manifesta claramente, oculta. Isso porque o ato de legislar (assim como o ato de negociar o texto de um tratado) é uma confluência de dois sistemas: o jurídico e o político. Uma norma, portanto, poderá exercer uma função simbólica quando o sistema político se sobrepor ao sistema jurídico.
Por outro lado, uma norma criada para atender interesses políticos ocultos pode apresentar, posteriormente, uma força normativa. Friedrich Müller: “Afinal de contas, não se estatuem impunemente textos de normas e textos constitucionais, que foram concebidos com pré-compreensão insincera. Os textos podem revidar”. (NEVES, 2005.p.5).
A identificação de um texto como simbólico pode produzir dois efeitos: um positivo e um negativo. Identificada a força simbólica de um texto, a sociedade pode se organizar e lutar pela concretização das normas ali previstas, reivindicando o fim da atuação deturpada da norma, dessa forma, uma norma que não estava destinada a ter força normativa pode vir a ter. Em contrapartida, a sociedade, pode perder a confiança no sistema jurídico e cair em uma inércia que impedirá a obstruirá, em parte, a evolução dos direitos.
Especificamente nos direitos humanos, o efeito positivo se manifesta com a implementação dos direitos. O efeito negativo conduz à “ manipulação política, seja para encobrir situação de carência de direitos, seja mais bruscamente, para dar ensejo a opressão política”. (NEVES, 2005, p.3) e impedir sua efetivação.
“As declarações liberais clássicas de direitos, no contexto da revolução francesa e do movimento da independência americana, já continham uma força simbólica que veio a contribuir, em muito, para a realização posterior dos direitos humanos. Nesse sentido, Lefort refere-se a relevância das declarações “legais” dos direitos humanos no Estado Democrático de Direito, cuja função simbólica teria servido a conquista e a ampliação desses direitos.” (NEVES, 2005, p.17).
É importante observar que possibilidade da força simbólica dos direitos humanos gerar, no âmbito interno dos Estados, efeitos positivos é maior em Estados efetivamente democráticos, onde o espaço de diálogo entre a população e o governo é ampliado.
No âmbito internacional, em que pese a Carta das Nações Unidas dispor que todos os Estados são soberanos e iguais, não há uma relação democrática entre os Estados. Os poderosos utilizam o direito internacional para justificar condutas contrárias ao próprio direito.
Em relação aos direitos humanos não é diferente. O discurso dos direitos humanos é frequentemente utilizado como arma política monopolizadora, o que é possível em virtude da ausência de mecanismos efetivos que sancionem os “todos” os Estados que os violem.
A Carta das Nações Unidas prevê que o Conselho de Segurança determinará a existência de qualquer ameaça a paz, ruptura da paz ou ato de agressão, lhe compete, ainda, decidir quais serão as medidas a serem tomadas.
Bem, esse Conselho é composto por quinze membros, dos quais cinco são membros permanentes e possuem direito de veto. É evidente que compete a esses cinco membros decidirem em que casos de violação dos direitos humanos a ONU[12] deverá interferir. A Carta, portanto, forneceu os meios para a atual política intervencionista, levada as últimas conseqüências pelo ex-presidente dos Estados Unidos da América (EUA) Georg W Bush. Neste caso, no entanto, ao menos no caso do Iraque, sem aprovação inicial da ONU.
Todos esses fatores contribuem para a ausência de força-normativa dos Direitos Humanos. A força simbólica, portanto, se manifesta na utilização do discurso dos Direitos Humanos pelo Conselho de Segurança para justificar suas ações intervencionistas, atendendo aos interesses espúrios dos Estados mais fortes.
4. AÇÕES INTERVENCIONISTAS DO GOVERNO DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA
Não é novidade que um dos países mais poderosos do mundo utilizaram e utilizam o discurso dos Direitos Humanos para justificar as interferências em outros Estados-soberanos, com o escopo de preservar seus interesses.
No período da Guerra-Fria, esse país auxiliou, financiou e incentivou os golpes de Estado na América Latina que implementaram ditaduras, responsáveis pela morte de milhares de pessoas.
Exemplo emblemático é o caso das atividades militares e paramilitares na Nicarágua. Os Estados Unidos acusaram o governo sandinista da Nicarágua de incitar a subversão na América Central, o que para o governo dos EUA assegurava o direito de agir em legítima defesa coletiva e auxiliou, financiou atividades militares e paramilitares para tomarem o poder na Nicarágua. O caso foi levado a Corte Internacional de Justiça, que se considerou competente, tendo em vista que os dois países aceitaram sua jurisdição.
“Em 26 de junho de 1986, a Corte decidiu que os EUA, ao treinar, equipar, financiar (...) e assistir, de qualquer maneira as atividades militares e paramilitares na Nicarágua, e contra ela, violaram (...) a obrigação que lhes impõe o Direito Internacional costumeiro de não intervir nos negócios internos de outros Estados”.(BRANT, 2005, p.261).”
Portanto, a Corte decidiu favoravelmente a Nicarágua. Os EUA se recusaram a cumprir a sentença. A Nicarágua recorreu ao Conselho de Segurança com base no artigo 94 (2) da Carta das Nações Unidas que prevê:
“Se uma das partes num caso deixar de cumprir as obrigações que lhe incumbem em virtude de sentença proferida pela Corte, a outra terá direito de recorrer ao Conselho de Segurança que poderá, se julgar necessário, fazer recomendações ou decidir sobre medidas a serem tomadas para o cumprimento da sentença.” (CARTA das Nações Unidas, 2006,p.53).
Contudo, o Conselho de Segurança foi impedido de agir, em virtude do veto dos EUA. O instituto previsto para assegurar a efetividade dos direitos previstos na Carta das Nações Unidas restou sem efeito por razões de interesse político de um de seus membros.
Algumas décadas depois, o governo dos EUA, após o atentado terrorista de 11 de setembro de 2001, iniciou uma perseguição aos terroristas responsáveis pelo referido atentado, denominada guerra contra o terror. (Essas ações foram iniciadas sem autorização do Conselho de Segurança).
Alegou que o Iraque apoiava essas organizações e enviou tropas norte-americanas (apoiado pelo Canadá e Inglaterra) para “garantir” a paz e a segurança mundial.
Bombardeou o Iraque com armamentos que possuíam probabilidade “mínima” de errar o alvo indicado. As bombas acertaram escolas, hospitais e casas de civis, mataram milhares de iraquianos.
Num documentário intitulado razões para a guerra, um soldado americano afirmou: não entendo o povo iraquiano. Nós estamos aqui para defendê-los e eles nos atacam. No mesmo documentário, o pai de uma vítima do atentado contra o World Trade Center, desejando vingar-se enviou um pedido para o exército americano, requereu que o nome do seu filho fosse escrito em uma das bombas endereçadas ao Iraque. A bomba com o nome do filho do patriótico americano atingiu uma escola e matou todas as crianças que assistiam aula.
Algum tempo depois, esse homem assistiu ao ex-presidente dos Estados Unidos, Georg W Bush, afirmar, em rede nacional, que o Iraque não estava envolvido do atentado de 11 de setembro.
A Organização das Nações Unidas não atuou no caso do Iraque, parece que não houve violação de direitos humanos nesse caso.
Em 2007, Bagdá, soldados da Blackwater[13] atiraram contra civis iraquianos na Praça Nisour. Os soldados não foram punidos, o Ministro do Interior do Iraque ensaiou uma revolta, mas não houve conseqüências mais drásticas. A ONU não se manifestou.
São exaustivos os exemplos de impunidade quando se trata de violação dos direitos humanos. Os textos existem, os direitos estão garantidos, falta-lhes, porém, força normativa, e um sistema de proteção efetivo. Necessário, menos influência do político sobre o jurídico.
CONCLUSÃO
Os direitos humanos são frutos da criação humana, eles são historicamente construídos. A concepção contemporânea desses direitos surgiu graças a muito sangue e luta. Contudo, presencia-se uma banalização do discurso dos direitos humanos.
A ausência de força normativa conduziu a uma descrença no poder que esses direitos têm de transformar a realidade. Porém, como ficou demonstrado no texto, não se trata de um problema apenas de ineficácia jurídica.
O sistema de proteção instituído pela Organização das Nações Unidas, sistema nada democrático, possibilitou a utilização desses direitos como forma de legitimar o intervencionismo de alguns Estados em outros, contrariando os princípios da não – intervenção e da soberania.
Os Estados poderosos se apropriam do direito para garantir que seus interesses políticos e econômicos prevaleçam.
É necessário criar uma nova alternativa, revisar o processo de decisão nas Nações Unidas, democratizá-lo. A solução não é simples e muito menos fácil, mas é necessário iniciar a mudança.
O direito não pode servir a política e a economia, ele é uma ciência autônoma, com objetivos e princípios próprios e deve ser forte para limitar os excessos da política e da economia.
REFERÊNCIAS
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AGAMBEM, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua, Editora UFMG, Belo Horizonte, 2007.
BADIOU, Alain. “Le Siécle”, Editions du Seuil, Paris, 2005, pagina 73.
SOUZA SANTOS, Boaventura de. A gramática do tempo: por uma nova cultura política; Editora Cortez, São Paulo 2006
GINSBURG, Carlo. Olhos de Madeira – novas reflexões sobre a distância, Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2001
COLETÂNEAde Direito Internacional. Organizador Valério de Oliveira Mazzuoli. São Paulo: RT, 2006.
HABERMAS, Jürgen. Sobre a legitimação baseada nos Direitos Humanos. Revista de Direito, Estado e Sociedade, n?17, agosto-setembro. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica, 2000.
HOBSBAWN. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das letras, 1995.
MAGALHÃES, José Luiz Quadros. Direito Constitucional: Tomo I. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.
NEVES, Marcelo. A Força Simbólica dos Direitos Humanos. Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, n? 4, outubro/novembro/dezembro, 2005. Disponível em http://www.direitodoestado.com.br. Acesso em: 07 de março 2008
NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos, Democracia e Integração Regional: Os Desafios da Globalização. Revista de Direito Constitucional e Internacional. Ano 9, outubro-dezembro de 2001. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
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ZIZEK, Slavoj. “Plaidoyer em faveur de l’intolerance”, Éditions Climats, Castelnau-le-lez, 2004.
[1] Mestranda em Direito Internacional Público na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
[2] Hannah Arendt citada por Giorgio Agamben em Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I (AGAMBEN,2007,p.132).
[3] A divisão em fases do processo de construção dos Direitos Humanos facilita a análise evolutiva desses direitos, porém o início de uma nova fase não significa que houve um encerramento da anterior. As fases se misturam.
[4] Os significantes são os símbolos. Exemplo: a palavra liberdade é um significante composto de signos diversos. A combinação das letras LIBERDADE resulta na palavra que ganha sentido ou significados diferentes em diferentes épocas e lugares. O texto não existe se não for lido e a partir do momento que é lido são atribuídos sentidos aos seus significantes. É impossível não interpretar e interpretar significa atribuir sentido, o que por sua vez significa jogar toda uma carga de valores, de pré-compreensões que pertencem a uma cultura específica, e mesmo a pessoas específicas.
[5] GINSBURG, Carlo. Olhos de Madeira – novas reflexões sobre a distância, Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2001, pg. 16. Nesta página Gisnsburg cita Chklovski que diz o seguinte a respeito do estranhamento: “Para ressuscitar nossa percepção da vida, para tornar sensíveis as coisas, pra fazer da pedra uma pedra, existe o que chamamos de arte. O propósito da arte é nos dar uma sensação da coisa, uma sensação que deve ser visão e não apenas reconhecimento. Para obter tal resultado, a arte se serve de dois procedimentos: o estranhamento das coisas e a complicação da forma, com a que tende a tornar mais difícil a percepção e prolongar sua duração. Na arte, o processo de percepção é de fato um fim em si mesmo e deve ser prolongado. A arte é um meio de experimentar o devir de uma coisa; para ela, o que foi não tem a menor importância.”
[6] No livro “A gramática do tempo: por uma nova cultura política”, Boaventura de Souza Santos faz uma excelente análise das matrizes ideológicas que sustentam a noção de inferioridade do outro, fundamental para justificar interna e externamente a dominação e a exploração colonial, imperial e pós-colonial. (SOUZA SANTOS, Boaventura de. A gramática do tempo: por uma nova cultura política; Editora Cortez, São Paulo 2006, paginas 184 a 190).
[7] O filósofo Alain Badiou observa que um dos sintomas da decomposição da democracia é a ruína da língua. A capacidade das palavras de nomear é atacada e comprometida. BADIOU, Alain. “Le Siécle”, Editions du Seuil, Paris, 2005, pagina 73.
[8] O filosofo esloveno Slavoj Zizek tem uma serie de livro onde analisa de forma instigante os mecanismos de encobrimento do real. A ideologia como mecanismo de manipulação do real e dominação das pessoas. ZIZEK, Slavoj. “Plaidoyer em faveur de l’intolerance”, Éditions Climats, Castelnau-le-lez, 2004.
[9] Recomendamos o livro de Raymond Williams sobre a origem e as transformações do sentido de palavras-chave. WILLIAMS, Raymond. “Palavras-chave (um vocabulário de cultura e sociedade)”, Boitempo editorial, São Paulo, 2007.
[10] ZIZEK, Slavoj. Plaidoyer en faveur de l´intolérance. Climats, 2004, Paris, pag. 18. Interessante não apenas ler este livro como a obra deste fascinante pensador esloveno. Vários livros já foram traduzidos e publicados no Brasil: Bem vindo ao deserto do real e As portas da revolução são duas obras importantes.
[11] Dignidade aqui entendida como o mínimo existencial necessário para que o ser humano desenvolva sua potencialidade, acesso aos direitos. Sem definir o conteúdo do que seja uma vida digna, posto que esse conceito é altamente subjetivo, variando conforme a cultura de um povo. Tanto o genocídio quanto a pobreza são formas de violação contra os direitos humanos, limitam as possibilidades de existência de um indivíduo.
[12] A Organização da Nações Unidas possui atualmente 192 Estados-membros.
[13] Empresa de segurança privada, contratada para proteger militares americanos no Iraque. Sobre o tema da privatização da guerra, entre diversos livros recentes citamos o livro de Dario Azzelini, El Negocio de la Guerra. (AZZELINI, El negocio de la guerra, Editora Txalparta, Buenos Aires, Argentina, 2008).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Reis, Carolina dos. A ideologia dos direitos humanos. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 23 mar. 2009. Disponível em: . Acesso em: 23 mar. 2009(atualizar data).
Professor do mestrado e doutorado da PUC-Minas e da UFMG e Diretor do CEEDE(MG), mestre e doutor em Direito Constitucional, coordenador da pós-graduação da Fundação Escola Superior do Ministério Público de Minas Gerais, professor do Mestrado e Doutorado da PUC/MG, Centro Universitário de Barra Mansa (RJ) e UFMG
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